O MUNDO DA CRIANÇA EM ALGUNS ESCRITOS DE WALTER BENJAMIN
1. Introdução:
A fada, por intermédio da qual alguém satisfaz um desejo, existe para todo o mundo.
Uma das idéias mais instigantes que perpassam os escritos de Walter Benjamin é a de infância, vinculada às reflexões sobre a experiência moderna, à natureza e ao uso da linguagem a partir de uma teoria mimética e das semelhanças, à reconstrução da história a partir de detalhes e ruínas, à temporalidade como repetição ou como criação que, no conjunto do seu pensamento, são questões que se entrelaçam.
Os escritos sobre a infância revelam o poeta que foi Benjamin: ao trazer para nós a visão da criança e a sua sensibilidade ante o mundo, Benjamin manifesta a sua própria sensibilidade e imaginação criadora. Ao mesmo tempo, instiga a discussão sobre as premissas educacionais que orientaram a formação de crianças e jovens no processo de constituição da sociedade burguesa. Suas advertências a respeito da educação alemã ocorrem no momento em que a formação infantil se tornava objeto do interesse do regime totalitário que se instaurava na Alemanha. Nesse contexto, seus escritos assumem um sentido político relevante, à medida que a valorização da vida infantil se vincula claramente a uma nova leitura da história, que visa retomar a tradição e a memória do que foi sufocado, reprimido no processo de constituição da modernidade. Tentar entender a experiência infantil significa questionar com argúcia as formas de educação modernas para tentar uma reformulação teórica condizente com uma nova prática política revolucionária.
Na vida das crianças, os sentimentos se manifestam com pureza e sem ambigüidade. Como acentuava Baudelaire num texto caro a Benjamin, a criança goza da “faculdade de se interessar vivamente pelas coisas, mesmo pelas mais triviais em aparência”. A experiência infantil se realiza como embriaguez, isto é, como reconhecimento da poderosa força vital que emana das coisas.[1]
Embora entendendo que a criança constrói sua visão de mundo com base na sensibilidade, é necessário salientar que a noção de infância em Benjamin não nos remete a condições naturais da estrutura humana, mas se apresenta como resultado de um processo histórico de formação das sociedades. Não existe uma infância pura ou um mundo da fantasia separado e alheio ao social. O mundo perceptivo da criança se enraíza e, ao mesmo tempo, se confronta com o mundo histórico.
A criança, como o jovem que ainda não se adaptou às exigências do mundo adulto (do trabalho e da razão instrumental), está aberta à recepção das semelhanças sensíveis e sua formação individual se produz como aprendizado (e criação) do mundo. Assim, a experiência infantil da brincadeira, da expressão mimética e lúdica, se constitui como o gérmen do novo que pode ser contraposto à experiência do adulto, adaptado às condições do mundo regido pelo modo de produção e de representação modernos.
A criança mantém vivo algo que se perdeu na história da modernidade e que tem como paralelo o que os intelectuais identificam como a crise da experiência. Nos escritos benjaminianos é farta a referência a uma “perda da experiência”, que pode estar vinculada a um trauma causado pela primeira guerra mundial, mas que também pode ser entendido como um resultado de um processo histórico que culminou na formação da percepção moderna do mundo, a partir de determinadas estruturas de trabalho e da aplicação generalizada da técnica para fins de exploração da natureza e dos homens.
Entender essa perda implica explicitar alguns aspectos da modernidade, na passagem do sagrado ao profano, na perda de referências coletivas, substituídas pela vivência individual e solitária do homem moderno. Benjamin trata esses aspectos em vários de seus escritos, no sentido de precisar em que se constitui a vivência moderna, em confronto com a experiência histórica e comunitária dos antigos. Essa é uma abordagem introdutória, que iniciamos com uma breve explicitação da noção de experiência.
2. A distinção entre Erfahrung e Erlebnis:
No asco por animais a sensação dominante é o medo de, no contato, ser reconhecido por eles.
Já nos escritos de 1913-16, Benjamin questionava a aplicação dos paradigmas científicos para a leitura da história e percebia a necessidade de buscar outros parâmetros de reflexão visto que a vida se produzia com base em uma temporalidade diversa daquela pressuposta pelas ciências:
“Há uma concepção de história que, confiando na eternidade do tempo, só distingue o ritmo dos homens e das épocas que rígida ou lentamente correm na esteira do progresso. A isso corresponde a ausência de nexo, a falta de precisão e de rigor na exigência que ela coloca em relação ao presente.”[2]
Alimentando-se da crítica nietzscheana ao sistema universitário, o texto se propõe refletir sobre o “significado histórico atual dos estudantes e da universidade”, para fazer a crítica ao caráter profissionalizante do ensino e à vinculação da pesquisa científica a interesses utilitários que pressupõe a regulamentação do Estado. Tais vínculos deturpam o espírito criador e debilitam a função crítica do pensamento e da Universidade no âmbito da sociedade. O estudante precisa estar comprometido com uma “vida espiritual crítica”, com uma função criativa, transformadora e mesmo revolucionária, que não combina com assistencialismo.[3]
A perda de uma dimensão espiritual, que em outros escritos aparece como perda da dimensão do sagrado, se completa com a compreensão de que a sociedade moderna não reconhece a juventude porque não reconhece o envelhecimento: “é necessário reconhecer que eles (os jovens) precisam ser criadores, isto é, pessoas solitárias e que envelhecem”. Saber-se envelhecendo implica reconhecer um elo de nossa vida com o passado e a tradição. A compreensão do tempo, do passado e do futuro no presente, é a condição para a produção intelectual e o exercício do ensinar: “sem o lamento por uma grandeza perdida, não é possível nenhuma renovação da vida”. A grandeza do passado encontra expressão no sentimento da infância vivida, a “nostalgia confessada por uma infância feliz e uma juventude digna é a condição do criar”.[4] Esse tema, que é aprofundado em textos posteriores, tem como pressuposto um escrito anterior, de 1913, intitulado “Erfharung”, em que a idéia de um tempo vazio e homogêneo se esboça como a forma de experiência da modernidade.[5]
A experiência individual, anônima, fundada na objetividade do conhecimento e na eficiência do trabalho, conformada a padrões gerais, é a expressão de um mundo fragmentado, cristalizado, que se produz como somatória de vivências (Erlebnis) particulares e subjetivas. A imagem do “adulto” moderno, cético, individualista e amargo, é também a expressão de uma temporalidade linear, contínua, que se pretende desvinculada da tradição.
O ponto de partida de Benjamin nesse texto é precisamente a falta de comunicação entre os idosos e os jovens, caracterizando o rompimento do elo do presente com a tradição: a experiência do adulto é uma máscara “inexpressiva, impenetrável, sempre igual”,[6] que revela sua desilusão e desesperança. É uma experiência vazia, que se constitui de uma porção de dogmas em nome dos quais o adulto impõe sua vontade e sua autoridade, que condizem com o tempo repetitivo e sempre igual que caracteriza a história moderna: o adulto fala em nome de um conhecimento acumulado, fruto da aplicação de um método claro e distinto de dedução ou de indução que o fez acreditar que a verdade é passível de ser apropriada pela consciência; Em nome desse conhecimento o adulto descaracteriza a experiência juvenil, entendida como quimérica e inútil, já que parece não haver mais nada a conhecer, sendo a verdade o que está aí, na ordem instituída. O jovem, entretanto, acredita que exista uma verdade a ser buscada, “ainda que tudo o que foi pensado até agora seja equivocado”; sabe que a fidelidade (aos sonhos e à busca da verdade) “precisa ser sustentada, ainda que ninguém a tenha sustentado até agora”.[7]
Passo a passo, Benjamin critica o ceticismo subjacente à atitude do adulto e desfaz suas pretensões de verdade: o adulto julga em nome de um saber que toma como absoluto e conclusivo. Trata-se de uma cultura estéril e filistéia, cuja função é servir de instrumento para manter uma estrutura de poder. “A juventude lhe é uma lembrança incômoda do espírito, por isso ele a combate”[8]. A desesperança arrogante, resultado da negação do espírito, é uma máscara para desencorajar a ação e levar o jovem a acomodar-se ao instituído. A “verdade” do adulto se traduz na autoridade do Estado, da Igreja, das instituições que ancoram em determinados valores sem questioná-los e, em nome desses “valores”, dominam a sociedade.
O que é ser sério? Para o adulto é preparar-se para o trabalho, a profissão, é adequar-se a toda a estrutura de produção na sociedade moderna. É acomodar-se ao instituído, sufocando ou descaracterizando tudo o que possa sedimentar-se na sensibilidade e na imaginação. No fundo, trata-se de negar a dimensão utópica da vida (“nada é mais odioso ao filisteu que os ‘sonhos de sua juventude’[9]) e, com ela, qualquer possibilidade de renovação. Esta seriedade também é sinônimo de Aufklärung, em nome do qual os “bem-intencionados” e “esclarecidos”, aliados a “pedagogos sisudos e cruéis”, empurram os jovens desde cedo para a “escravidão da vida” (que é, também, a escravidão do trabalho). Desse ponto de vista dogmático, é como se a juventude fosse uma noite de desvarios, vindo depois a sabedoria ou “a grande experiência”. Ora, é essa “experiência” que Benjamin ironiza e a denomina “pobreza de idéias e monotonia”.[10]
O mundo moderno não possui a força do espírito e, por isso, é triste e cinzento. A “grande experiência” dos adultos, que se traduz no conhecimento científico, é pobre e monótona porque cancela o passado, que entende como a infância ingênua da humanidade, e paraliza o presente, gerando uma apatia corrosiva e narcotizante. A ela o jovem deve contrapor “uma outra experiência”: com base no pensamento dos românticos e em Nietzsche, Benjamin define essa nova experiência como algo que “pode ser hostil ao espírito e aniquilar muitos sonhos que florescem”, mas é “o que existe de mais belo, intocável e inefável”, porque é alimentada pela energia da juventude que se dedica à crítica.[11] E é na interlocução com o pensamento alemão do século XVIII, mais especificamente no contexto do pensamento de Kant, equiparado por Benjamin a Platão, que as raízes da noção de experiência começam a ser buscadas. A leitura de Kant e, depois, a sua crítica a partir do estudo aprofundado do romantismo de Jena, foram fundamentais para o questionamento de um determinado modelo de racionalidade que se constituiu no pressuposto da vivência moderna na prática da vida urbana e do capitalismo.
O escrito de 1933 denominado Experiência e Pobreza,[12] retoma a problemática do texto “Erfahrung”, de 1913, agora opondo a vivência moderna, de um tempo marcado pela eterna repetição, à experiência coletiva e comunicável dos povos antigos, liquidada a partir das limitações de um mundo voltado para a produção e o consumo de bens. Nas sociedades pré-capitalistas a experiência individual se produzia e assumia sentido no interior de uma experiência coletiva que se concretizava como um saber que se transmitia de geração a geração em forma de provérbios ou histórias: o idoso comunicava ao jovem uma experiência comum que era, por sua vez, compreendida no exercício de novas práticas sociais. A modernidade se caracteriza como um modo de vida que institui uma nova temporalidade, concomitante com a perda do sentido da experiência resultante da vida coletiva.
Essa mudança estrutural tem como correlato o desenvolvimento da técnica e sua função no contexto das relações de dominação do homem e da natureza: a técnica, aplicada aos objetivos econômicos e políticos que culminaram na primeira grande guerra, demonstrou que as experiências comunicáveis se perderam irremediavelmente para o homem moderno: “nunca houve experiências mais radicalmente desmoralizadas que a experiência estratégica pela guerra de trincheiras, a experiência econômica pela inflação, a experiência do corpo pela fome a experiência moral pelos governantes”[13]; a desesperança arrogante do adulto em relação ao novo se apresenta agora como rompimento com a herança cultural e como aniquilamento de toda experiência acumulada; a “verdade” dos adultos se traduz na destruição dos vínculos com a cultura e com a natureza, resultado da aplicação das técnicas modernas num contexto de dominação econômica e política.
A realidade de destruição provocada pela aplicação das novas tecnologias na guerra evidencia o processo de alienação em que o homem moderno foi lançado, processo que se traduz na afasia resultante da ausência de elos entre a vivência individual e os interesses coletivos: os soldados não conseguem assimilar e exprimir em palavras o que viveram. A ausência de palavras é a expressão da perda de referências coletivas, a comprovação de uma mudança estrutural na vida da sociedade que transparece no exterior, no isolamento cotidiano a que cada um está relegado, mesmo em meio à multidão. O que se faz não pode ser partilhado, mesmo que possua um conteúdo e uma verdade, porque a verdade que prevalece no mundo moderno é a da técnica, do trabalho fragmentado.
O que se tem é uma cisão entre a esfera pública e o mundo privado, refúgio ante o processo de fetichização, espaço onde se tenta criar elos que permitam perceber uma determinada ordem e um significado, para sobreviver tendo algum referencial que justifique a existência.
O texto Experiência e pobreza coloca as bases para o reconhecimento de uma situação de perda da experiência, à qual se vincula o declínio da narrativa tradicional. Nas sociedades antigas o elo entre gerações se concretizava pela transmissão da experiência assimilada por palavras, já que a forma de partilha e comunicação privilegiada era a linguagem oral. Na situação moderna, fundada no modo de produção capitalista, estão dadas as condições para a continuidade da reificação. Os homens mudaram completamente sua percepção de si e do mundo e, isolados, “não aspiram a novas experiências”. Aspiram apenas a um mundo em que possam ostentar sua pobreza externa e interna. Depois de “devorarem toda a cultura” sentem-se saciados, exaustos. Mas ao “cansaço segue-se o sonho”,[14] a possibilidade do novo: Benjamin acentua o caráter positivo da situação de perda da experiência, que abre a perspectiva de recomeço, de reconstrução e de compromisso com uma outra prática de criação.
Ao refletir sobre a Erfahrung Benjamin também renova o conceito de tradição, cujo conteúdo é desvinculado do continnun histórico para apresentar-se inserido no presente, que é construído enquanto processo de destruição e reconstituição da tradição. O elemento destrutivo ou crítico permite retomar a autêntica tradição tendo como base a descontinuidade, isto é, se põe como origem de outras ordens de razão a fim de reconstruir a experiência num novo horizonte de sentido que, fundado na memória, é tendencialmente infinito. Essa questão permeia o texto O Narrador que, além de haver sido escrito mais ou menos na mesma época de Experiência e pobreza, desenvolve um argumento semelhante, agora para salientar o declínio e quase extinção da arte de narrar.
Assim como, na modernidade, somos pobres de experiência, somos também “pobres em histórias notáveis”, porque “quase nada mais do que acontece beneficia o relato; quase tudo beneficia a informação”.[15] A arte de narrar revela uma forma de pertencimento, de vínculo social e de experiência autêntica que se perdeu na modernidade. Saber contar e saber acolher a narração para, assim, contribuir para a produção de um novo saber que resulta do elo, do entrelaçamento de passado e presente, supõe que narrador e ouvinte possuam uma identidade sócio-cultural que os integre à comunidade.
A autoridade do idoso assemelha-se à do curandeiro e ambas expressam algo que transcende a individualidade de cada um, tanto daquele que narra ou daquele que impõe as mãos quanto dos que ouvem ou recebem a cura: esse algo que temos dificuldade em entender a partir dos limites da individualidade moderna é o que concerne à vida da coletividade e que é o fundamento invisível e condição de possibilidade de transmissão da experiência.
A arte de narrar, própria das sociedades pré-capitalistas, se produzia a partir de uma dimensão espacio-temporal que caracterizava a vida sedentária do camponês e a
aventura dos viajantes: “a extensão real do reino narrativo, em todo o seu alcance histórico”, se concretiza pela “interpenetração desses dois tipos arcaicos” na figura do artesão.[16]
A perda da capacidade de transmitir experiências por meio da narrativa oral tem como correlato a evolução secular das forças produtivas. A expressão moderna da mudança é o surgimento do romance, cuja difusão supõe a invenção da imprensa e a existência do “indivíduo isolado, que não pode mais falar exemplarmente sobre suas preocupações mais importantes” porque perdeu as referências coletivas.[17] Um indivíduo que vive a dimensão temporal própria da era industrial e dos centros urbanos: temporalidade mecânica e fragmentada que dissolve as possibilidades de sedimentação na memória. Na vivência individual moderna se impõe a dimensão privada, isolada do contexto de produção coletiva. Recuperar a experiência no sentido histórico implica buscar no âmbito da modernidade os caminhos que possibilitem reavivar a memória submersa no inconsciente. Esses caminhos abrem-se no exercício da arte (cinema), na linguagem e na experiência infantil.
3. A experiência infantil:
Nunca podemos recuperar totalmente o que foi esquecido. E talvez seja bom assim. O choque do resgate do passado seria tão destrutivo que, no exato momento, deixaríamos de compreender nossa saudade.
Inicialmente Benjamin lembra que as crianças são bem diferentes do modo como os adultos as concebem ou as conceberam ao longo da história. A noção de infância que herdamos de épocas anteriores e que são preservadas ou aprofundadas pela pedagogia não cabe à realidade infantil: a “criança exige dos adultos explicações claras e inteligíveis, mas não explicações infantis... A criança aceita perfeitamente coisas sérias, mesmo as mais abstratas e pesadas, desde que sejam honestas e espontâneas”.[18]
Até o século XIX, desconhecia-se a criança como ser inteligente e a imagem do adulto era proposta pelos educadores como ideal a atingir.[19] A pedagogia desenvolvia seus métodos conforme pressupostos teóricos que predominavam em cada época, por exemplo, as idéias de Rousseau, que afirmavam a piedade, a bondade e a sociabilidade do homem natural e se propunha fazer da criança, “ente natural por excelência, um ser supremamente piedoso, bom e sociável”. Os livros infantis e o material didático expressavam tanto a preocupação com os fatos e a utilidade das coisas quanto com ensinamentos morais próprios à realização desses objetivos. Benjamin procura mostrar como o individualismo burguês que se instaurou na sociedade moderna se sedimenta na idéia de que as crianças são diferentes e é preciso adaptá-las ao mundo adulto. Na verdade, o adulto, por não compreender a percepção infantil porque a aborda de uma perspectiva temporal linear, também não entende exatamente o sentido do brinquedo na experiência da criança. Os adultos não percebem que “a terra está cheia de substâncias puras e infalsificáveis, capazes de despertar a atenção infantil. Substâncias extremamente específicas”, com as quais a criança constrói o seu mundo.[20]
A relação entre a sensibilidade da criança e o trabalho do artista se coloca em um fragmento de 1914-15 denominado: Die Farbe vom Kinde aus betrachtet (A visão das cores pela criança). Nele Benjamin acentua que “as cores têm algo de espiritual” algo dessa claridade espiritual transparece na mistura das cores a produzir novos nuances. “O arco-iris é uma límpida imagem infantil”. Esta idéia está fortemente ancorada na estética dos românticos, na relação entre a visão infantil das cores e a essência espiritual no infinito da cor. Opondo as cores às formas, Benjamin contrapõe também a visão infantil, fundada numa inquebrantável atividade da fantasia, à visão do adulto, abstrata e ordenada, que busca o acabamento da substância, a individualidade do tom. Existem no mundo muito mais cores do que se possa identificar. E as “crianças se alegram com a transformação das cores na sua vivaz passagem de nuances (bola de sabão), ou então na distinta e expressa gradação qualitativa das cores” sobre oleografia, exposição de pintura, visão de imagem e lanterna mágica. As cores são, para ela, “o meio de toda mudança e não sintoma”. Seu olhar não pousa sobre a obra para julgá-la segundo padrões, mas para perceber a diversidade de sentidos e as possíveis correspondências dadas nas cores.[21]
No modo diverso de intuir e de se entregar à sensibilidade, vislumbra-se a oposição entre Erfahrung e Erlebnis: “A ordem estética é paradisíaca”, porque não há fusão imaginável no objeto como estímulo da experiência.[22] O artista e a criança intuem, fantasiam, criam, modo que expressão que colocam a possibilidade de reconstruir a experiência. É como se Benjamin percebesse na visão intuitiva da criança algo que prefigura a Erfahrung perdida pelo homem moderno, agora vivendo nos limites da Erlebnis. A concepção infantil das cores traz o sentido da mais alta formação artística, da pureza na qual a criança contempla, no conteúdo colorido, a fantasia do mundo. A fantasia se concretiza na contemplação das cores e em inteira relação com seu desenvolvimento e sua alegria que a mantém em criação.[23] Tal fantasia não pode se produzir a partir das formas, da ordem das coisas, mas somente do mundo vivo dos homens, em que a contemplação se traduz em sentimento criador.
Esta era também a perspectiva de Baudelaire para quem “nada se parece mais com o que se chama de inspiração do que a alegria com a qual a criança absorve a forma e a cor”, isso porque na criança a “sensibilidade ocupa quase todo o seu ser”. Aliada ao impulso da “curiosidade profunda e alegre”, a sensibilidade aflora e se expressa no “olhar fixo e animalescamente extático das crianças diante do novo, qualquer que seja ele”.[24] Benjamin acentua que “as cores na vida da criança são a pura expressão da sua pura sensibilidade,” meio pelo qual ela própria se orienta no mundo. As cores contém o ensinamento de uma vida espiritual que é criadora na medida que os condicionamentos e as causas menos as habitem.[25]
As possibilidades de uma nova experiência estão, basicamente, na narrativa, na arte e na vida infantil: do mesmo modo como o narrador, ao contar estórias, transporta o leitor para um tempo em que “o homem podia acreditar-se em sintonia com a natureza e” acreditar que “os planetas nas alturas do céu ainda se preocupavam com o destino dos homens”,[26] o artista questiona o sentido dado das coisas no contexto da produção moderna e confere ao objeto um novo significado no âmbito do seu trabalho; a criança, nas brincadeiras, evidencia afinidades e supera antinomias ao fazer-se igual à matéria que a circunda para criar seu próprio mundo no qual os objetos ganham vida e sentido.
A variedade do colorido do desenho infantil e o modo peculiar de apreender as cores em sua transparência é expressão do modo infantil de ver o mundo e romper limites, assim como os jogos são mecanismos de conhecimento concreto do mundo por meio da mímesis. As brincadeiras, em suas mais variadas modalidades, manifestam a importância da mímesis na apropriação do mundo. “Os jogos infantis são impregnados de comportamento mimético”.[27]
A criança que brinca cria com seus brinquedos e estes são “tanto mais verdadeiros quanto menos dizem aos adultos”, isto é, quanto mais atraentes e sofisticados, mais perdem o caráter de instrumentos de brincar; quanto mais imitam o mundo adulto, “mais longe estão da brincadeira viva”. A “imitação está em seu elemento na brincadeira e não no brinquedo”, ou seja, imitar não é reproduzir, mas identificar-se para compreender: a “criança quer puxar alguma coisa e se transforma em cavalo, quer brincar com areia e se transforma em pedreiro, quer se esconder e se transforma em bandido ou policial”,[28] quando não se transforma em “moinho de vento e trem”, imitando não só as pessoas, mas todas as coisas.[29]
A concretização da faculdade mimética que impregna a relação da criança com o mundo, que a faz identificar-se com as coisas ou transformar-se nelas no momento da brincadeira, se explicita na sua experiência das cores. A leitura da visão infantil das cores, acima descrita, retorna em outro fragmento, em Infância em Berlim por volta de 1900:
“Em nosso jardim havia um pavilhão abandonado e carcomido. Gostava dele por causa de suas janelas coloridas. Quando, em seu interior, passava a mão de um vidro a outro, ia me transformando. Tingia-me de acordo com a paisagem na janela... Acontecia o mesmo com minhas aquarelas, onde as coisas me abriam seu regaço tão logo as tocava com uma nuvem úmida. Coisa semelhante se dava com as bolhas de sabão. Viajava dentro delas por todo o recinto e misturava-me ao jogo de cores de suas cúpulas até que se rompessem. Perdia-me nas cores, fosse no céu, numa jóia, num livro. De todo modo, as crianças são sempre presas suas”.[30]
As cores são o meio de identificação com as coisas e de integração na mudança e no movimento da fantasia que percebe e participa do inacabamento das coisas fazendo-se. Perder-se nas cores é uma forma de perceber correspondências e de habitar o mundo sem a preocupação de definir ou respeitar limites. É a idéia que permeia a introdução de Tiergarten: “Saber orientar-se numa cidade não significa muito. No entanto, perder-se numa cidade, como alguém se perde numa floresta, requer instrução”.[31] Um processo de aprendizagem que tem como pano de fundo a conhecida idéia bíblica do “perder-se para se encontrar”, perder-se para viver, para criar outras relações de pertencimento e temporalidade, que resultam em novo conhecimento do mundo.
Existem duas características da brincadeira que poderiam ser retomadas no processo de conhecimento do mundo pelo adulto: a primeira, revela o mundo perceptivo da criança em sua relação com a tradição, isto é, demonstra que a brincadeira é permeada por traços culturais de gerações anteriores ante os quais a percepção infantil se confronta. Não só a fantasia dos contos de fadas, mas também antigos brinquedos foram originalmente objetos de culto impostos à criança e “somente graças à sua imaginação se transformaram em brinquedos”.[32] A segunda, revela que a base de toda brincadeira é a lei da repetição, que atua tanto como imersão no prazer (compulsão que se repete no sexo) quanto como “transformação em hábito de uma experiência devastadora”, princípio de toda aprendizagem infantil. A relação da criança com a matéria por meio da brincadeira se produziria de modo análogo à experiência amorosa do adulto, entendida como uma vivência que antes de nos fazer penetrar, pelo arrebatamento do amor, “na existência e nos ritmos frequentemente hostis de um ser humano estranho”, se produziria como ensaio por meio dos “ritmos originais que se manifestam, em suas formas mais simples, nos jogos com coisas inanimadas”. E Benjamin conclui que “é justamente através desses ritmos que nos tornamos senhores de nós mesmos”.[33]
A experiência infantil difere da experiência do adulto porque a criança recria a experiência enquanto sensibilidade, sua relação com o mundo é mimética, isto é, uma relação em que a enigmática dualidade de opostos se daria como relação entre coisas diferentes que se aliam e se igualam. Esconder-se, por exemplo, significa sentir-se “encerrada no mundo da matéria. Ele (este mundo) se torna descomunalmente claro para ela, chega-lhe perto sem fala”. Uma quase identificação, em suma: a “criança que está atrás da cortina torna-se ela mesma algo ondulante e branco, um fantasma. A mesa de refeições sob a qual ela se acocorou a faz tornar-se ídolo de madeira do templo onde as pernas entalhadas são as quatro colunas”. E a porta atrás da qual ela se esconde funciona como “pesada máscara e mago-sacerdote, que enfeitiça todos os que entram sem pressentir nada”. A criança se entrega à magia e ao encantamento que envolvem a brincadeira: “quando ela faz caretas e dizem-lhe que basta o relógio bater e ela terá de permanecer assim”, expressa a mesma magia e verdade que “ela sabe no esconderijo: quem a descobre pode fazê-la enrijecer como ídolo debaixo da mesa, entretecê-la para sempre como fantasma no pano da cortina, encantá-la pela vida inteira dentro da pesada porta”. Por isso, ela espera ansiosa ser descoberta e, “com um grito alto ela faz partir o demônio que a transformaria assim”, antecipando o momento da descoberta “com um grito de autolibertação”.[34]
A relação do adulto com as coisas pressupõe o controle e a dominação. Nesse contexto, a própria repetição assume outros contornos: se, para o adulto, se trata apenas de se apropriar de “experiências terríveis e primordiais pelo amortecimento gradual, pela invocação maliciosa, pela paródia”, para a criança se trata principalmente de “saborear repetidamente, do modo mais intenso, as mesmas vitórias e triunfos”. A criança vive uma experiência prazerosa e mágica. O adulto “alivia seu coração do medo e goza duplamente sua felicidade quando narra sua experiência”, isto é, a reduz aos limites da representação.[35] O jogo é uma luta permanente e prazerosa que implica o intercurso entre o mágico e o razoável, o dionisíaco e o apolíneo, para construir a própria subjetividade.
A faculdade mimética supera, assim, a mera imitação, para se apresentar, nos jogos infantís, como uma relação nova e original com as coisas no processo de conhecimento do mundo. As crianças percebem afinidades, apreendem a multiplicidade de formas e sentidos e redefinem as coisas retirando-as de seu contexto significativo (do adulto) para dar-lhes uma nova significação. Nessa relação fraterna com as coisas, as crianças “se sentem atraídas irresistivelmente pelos detritos, onde quer que eles surjam”, nas construções, jardins, oficinas. “Nesses detritos, elas reconhecem o rosto que o mundo das coisas assume para elas, e só para elas. Com tais detritos, não imitam o mundo dos adultos, mas colocam os restos e resíduos em uma relação nova e original”. Desse modo, elas constróem seu mundo.[36] E o constróem combinando imparcialmente “as substâncias mais heterogêneas”, estabelecendo uma relação sóbria com os materiais para retirar, da “solidez e simplicidade de sua matéria, toda uma plenitude das figuras mais diversas”.[37]
O mesmo acontece com as palavras: para as crianças, “palavras ainda são como cavernas, entre as quais conhecem curiosas linhas de comunicação”. Benjamin recorda um jogo popular na época Biedermeier, em que o jogador recebia um conjunto de palavras e devia colocá-las em um contexto compreensível “de tal modo que a sua ordem não fosse alterada. Quanto mais curto o texto, quanto menos elementos mediadores contivesse, tanto mais notável seria a solução”. Para exemplificar, Benjamin imagina como uma criança de 12 anos montaria um texto ligando as palavras - rosquinha, pena, pausa, queixa, futilidade: “O tempo se lança através da natureza feito uma rosquinha. A pena cobre a paisagem e se forma uma pausa que é preenchida pela chuva. Não se ouve nenhuma queixa, pois não há nenhuma futilidade”. O nexo que se instaura entre as palavras é de afinidade e não de coerência lógica. O ato de leitura pode ser comparado a
este jogo em construção inversa: o leitor busca locuções e palavras como se fossem fixas, a fim de construir sua interpretação. Isso acontece principalmente com os escritos sagrados.[38]
Assim como procede com as coisas e as palavras, a criança também o faz com a leitura: ela interage com os personagens e participa da estória, inserindo-se nas figuras no momento da contemplação. “Frente ao livro ilustrado, a criança ... vence a parede ilusória da superfície e, esgueirando-se entre tapetes e bastidores coloridos, penetra em um palco onde o conto de fadas vive”.[39] Ao ingressar nesse mundo adornado de cores e tornar-se um personagem que compartilha ações e sentimentos, cada criança é uma nova Alice que reinventa a estória e a narra a cada vez de modo diferente. A fantasia a faz imergir nas coisas, nas figuras ou nas letras e a imaginação livre e criativa produz o conhecimento de si e do mundo.
4. Conclusão Provisória:
Benjamin não se descuida das mudanças históricas e do caráter social da aprendizagem infantil. A história cultural dos brinquedos mostra que estes não podem ser explicados apenas a partir do espírito infantil, mas expressam ainda o processo de construção da sociedade: as “crianças não constituem nenhuma comunidade separada, mas são partes de povo e da classe a que pertencem.” Desse modo, o brinquedo e a brincadeira infantil estabelecem “um diálogo mudo, baseado em signos, entre a criança e o povo”.[40] A resenha do livro de Gröber sugere que existem afinidades entre a concepção do mundo infantil e a arte popular que, em determinado momento histórico, ambas “queriam ser compreendidas como configurações coletivas”.[41]
As coisas e as palavras, juntamente com todas as possibilidades de expressão, constituem um universo de signos que expressam uma situação cultural e histórica precisa, cuja diversidade tem como pano de fundo a luta de classes que, por sua vez, fundamenta as experiências e lembranças infantis.
Por meio da história cultural dos brinquedos se constata inclusive a mudança da experiência que culmina na sociedade moderna e que, na construção dos brinquedos, se constitui na passagem do brinquedo artesanal ao brinquedo mecânico, da criatividade que aproxima os antigos brinquedos às obras de arte antigas até os modernos e sofisticados objetos que imitam o mundo adulto e se inserem no sistema de consumo. A pergunta implícita é: até que ponto a sociedade moderna adestra não só as crianças, mas também os adultos? Se, com o processo de educação, o adulto atua no sentido de integrar a criança a seu mundo, desenvolvendo uma prática educativa que, no fundo, diminui ou até extingue a capacidade mimética infantil, isso ocorre dentro de um contexto mais amplo em que o próprio adulto sofre um processo de conformismo e de subordinação do qual ele próprio não dá conta. A brincadeira “está na origem de todos os hábitos” e estes, “mesmo na sua forma mais rígida conservam até o fim alguns resíduos da brincadeira”. Benjamin conclui que “os hábitos são formas petrificadas, irreconhecíveis, de nossa primeira felicidade e de nosso primeiro terror”.[42]
As brincadeiras infantis como prática de conhecimento do mundo por meio da mímesis, questionam os pressupostos da modernidade, que se delineiam na noção de história, na experiência sensível e na relação com a natureza. As características da experiência infantil se esboçam em vários fragmentos no sentido de mostrar uma forma original e concreta de tratar as coisas e conhecê-las. Essa foi uma breve introdução ao assunto.
REFERENCIAL BIBLIOGRÁFICO
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[1] BAUDELAIRE, C. O pintor da vida moderna. In: BAUDELAIRE, C. Obras Estéticas – Filosofia da imaginação criadora. Petrópolis : Vozes, 1993, p. 223.
[2] BENJAMIN, Walter, A vida dos Estudantes. In: Reflexões: a Criança, o Brinquedo, a Educação São Paulo, Summus, 1984, p. 31.
[3] Idem, p. 34. Ver ainda MURICY, K. Benjamin: alegorias da dialética. Rio de janeiro : Relume Dumará, 1998.
[4] Idem, p. 40.
[5] BENJAMIN, Walter. “Experiência”. In: Reflexões: ... p. 23-25.
[6] Idem, p. 23.
[7] Idem, p. 24. Juventude enquanto tempo cronológico, mas também enquanto estado de espírito, vivência de uma nova temporalidade.
[8] Idem, p. 25.
[9] Idem, ibidem.
[10] Idem, p. 23.
[11] Idem, p. 25.
[12] BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza. In: Obras Escolhidas I - Magia e Técnica,
Arte e Política. São Paulo : Brasiliense, 1985, p. 114-119. Ver tembém: GAGNEBIN, J.-M.. História e Narração em W. Benjamin. São Paulo, Perspectiva, 1994.
[13] Idem, p. 115.
[14] BENJAMIN, Walter. Experiência e Pobreza, p. 118.
[15] BENJAMIN, Walter. . “O narrador”. In: Obras Escolhidas I , p. 203.
[16] BENJAMIN, Walter. “O narrador”, p. 199.
[17] Idem, p. 201.
[18] BENJAMIN, W., Livros infantis antigos e esquecidos. In: Obras Escolhidas I, p. 236-237.
[19] BENJAMIN, W., Brinquedo e Brincadeira. In: Obras Escolhidas I, p. 251.
[20] BENJAMIN, W., Livros infantis antigos e esquecidos. p. 237.
[21] BENJAMIN, W., Die Farbe vom Kinde aus betrachtet. GS. VI, p. 110.
[22] Idem, p. 111-12.
[23] Idem, p. 110.
[24] BAUDELAIRE, C. O pintor da vida moderna. p. 224.
[25] BENJAMIN, W., Die Farbe vom Kinde aus betrachtet. GS. VI, p. 111.
[26] BENJAMIN, W., O narrador, p. 266.
[27] BENJAMIN, W., A doutrina das semelhanças, p. 108.
[28] Idem, p. 247.
[29] BENJAMIN, W., A doutrina das semelhanças, p. 108.
[30] BENJAMIN, W., Infância em Berlim por volta de 1900. In: ______. Obras Escolhidas II,... p. 101.
[31] BENJAMIN, W. Infância em Berlim por volta de 1900. p. 73.
[32] BENJAMIN, W., Brinquedo e Brincadeira, p. 150.
[33] BENJAMIN, W., Brinquedo e Brincadeira, p. 252.
[34] BENJAMIN, W., Criança escondida. In: Rua de Mão Única, p. 39-40.
[35] BENJAMIN, W., Brinquedo e Brincadeira, p. 253.
[36] BENJAMIN, W., Livros infantis antigos e esquecidos, p. 237-238. Nesse contexto, o historiador teria muito a aprender com a criança.
[37] BENJAMIN, W., História cultural do Brinquedo, p. 248.
[38] BENJAMIN, W., Rosquinha, pena, pausa, queixa, futilidade. In: Obras Escolhidas II - Rua de Mão Única, p. 271-272.
[39] BENJAMIN, W., Visão do livro infantil. In: Reflexões: a criança, o brinquedo, a educação. São Paulo : Summus, 1984, p. 55.
[40] BENJAMIN, W., História cultural do Brinquedo, p. 246.
[41] BENJAMIN, W., Brinquedo e Brincadeira, p. 250.
[42] BENJAMIN, W., Brinquedo e Brincadeira, p. 253.
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